quarta-feira, 10 de agosto de 2011

OS VEGETAIS E O RITUAL

De acordo com Forsberg (1960:125)34, a vida vegetal é um dos segmentos mais óbvios de qualquer tipo de cultura, seja ela primitiva, desenvolvida, antiga ou moderna.

Apesar de o homem não ser considerado um vegetariano, as plantas desempenham papel fundamental na sua existência material e estão sempre presentes no seu ethos. Desta forma, é essencial que uma abordagem etnológica que pretenda compreender de maneira mais efetiva uma determinada cultura, desenvolva estudo aprofundado acerca das espécies vegetais pertencentes no universo sob pesquisa e integrantes da visão de mundo do(s) grupo(s) em questão.

No contexto dos grupos Jêje-Nagô esta vida vegetal assume relevância particular, uma vez que o vegetal desempenha papel preponderante em todos os níveis da existência do égbé, definindo-se, este como “comunidades que apresentam características especiais, ocupando um determinado terreno denominado “terreiro” onde se mantém e renova a adoração das entidades sobrenaturais, os òrìsà, e dos ancestrais ilustres, os egún” (Elbein dos Santos, 1977:32).

Esta importância tem sido constantemente apontada pelos estudiosos que são unânimes em afirmar que o conhecimento das ervas e de seu emprego é objeto de sigilo, portanto, pressupondo um processo iniciático, o que, em certa medida, ocasiona o conhecimento acadêmico fragmentado.

Bastide, nas décadas de 50 e 60, foi o primeiro a dedicar atenção especial a este aspecto e a tentar uma sistematização dos dados obtidos em Salvador (BA) em terreiros Jêje-Nagô, assim como em outras localidades por ele pesquisadas. Por duas vezes este autor lança apelo à comunidade acadêmica para que desenvolva esforços para alargar os conhecimentos sobre os vegetais, como feito por Cabrera (1954) no que diz respeito aos negros cubanos: “Que Osain, deus das folhas, inspire um pesquisador brasileiro como inspirou Lydia Cabrera!” (Bastide, 1955:334) e reitera a importância da questão quando aponta claramente “a importância das ervas nos candomblés.

Ora, a questão destas ervas ainda não foi estudada. É verdade que é difícil fazê-lo, pois como disse um babalaô, o “segredo está nas ervas”. Com isso queria dizer: a) que a força mágica provinha da virtude das ervas; b) que o tratamento das ervas não podia ser revelado ao primeiro que aparecesse. A composição dos banhos, o emprego de tais ou quais plantas merece um grande cuidado. “Pois pode acontecer que a força mística seja muito forte para certos corpos; nesse caso é preciso utilizar outras ervas negativas, para enfraquecer o resultado. Ou reciprocamente. Além disso, cada orixá tem suas ervas particulares” (Bastide, 1973:105).

Este mesmo autor, destacando a relevância dos vegetais, coloca também o seu papel contestatório no quadro da escravatura: “O tã-tã que se elevará nas noites sufocantes não será destinado a pedir chuva, a prosperidade da aldeia, a grandeza da tribo, mas chamará outros mistérios para o preparo de filtros de amor que permitirão às belas mulheres negras desforrarem-se do desprezo das patroas brancas, tomando o coração de seus maridos (segundo peças de processos, sabe-se de casos em que o marido se livrou de sua esposa para dar a direção de sua propriedade a uma amante preta que o tornara louco de amor), ou preparo de venenos poderosos que enfraqueciam o cérebro dos senhores, fazendo-os

cair em inanição e morrer lentamente (chamavam-se estas plantas venenosas de “ervas para amansar os senhores”), ou ainda, para fazer abortar as mulheres grávidas para não aumentar o número de escravos”. Os vegetais, entretanto, não podem ser encarados sob este ponto de vista, eles também proporcionavam ao escravo, através de sua utilização nos ritos de iniciação, por exemplo, a construção de sua identidade e a manutenção de uma cosmovisão, que o diferenciava do grupo dominante, o que, a longo prazo, deu ensejo à constituição de comunidades próprias.

Por outro lado, o elemento branco favoreceu a manutenção do conhecimento a respeito das propriedades dos vegetais (para o grupo dominante interessava apenas o aspecto terapêutico) e delegou ao negro a tarefa de medicar-se com os recursos que possuía, i.e., a utilizar-se de sua própria fitoterapia, não desligada, entretanto, de seu conteúdo simbólico.

Cada ainda ressaltar que “Essa terapêutica ainda que possa possuir certas virtudes médicas, já testadas pela farmacologia científica, como é o caso para um número considerável de plantas, o seu grau de poder curativo está diretamente ligado ao conteúdo

mágico-religioso que se lhe empresta” (Braga, 1960:71). Todavia, para que essa eficácia se produza, torna-se necessário a observação de certos requisitos: por exemplo, a coleta de espécies. Porém, como descrito por Bastide (1978:130- 131), as espécies vegetais devem ser buscadas em locais de mato, não cultivadas, portanto, em momento propícios, e por pessoa preparada para tal fim.

Nossos informantes, além de comprovarem as afirmações acima, trouxeram-nos novos dados: o encarregado da coleta das ervas deve abster-se de relações sexuais no dia em que for apanhar as folhas; algumas moedas devem ser colocadas antes das plantas serem coletas, na entrada do mato, juntamente com um pouco de mel, de fumo de rolo e cachaça – “como pagamento para o dono das folhas” (...) “pois as plantas são muito sestrosas se não se faz as coisas direito, elas desaparecem”. Um outro informante, ao descrever um descuido seu no ritual de coleta das espécies necessárias para um determinada cerimônia. Aliás, a medicina negra coexistia com a ciência médica dos brancos (...). Em cada bairro da cidade existe um cirurgião africano, cujo consultório, bem conhecido, é instalado simplesmente à entrada de uma venda. Generoso consolador da humanidade negra, dá as suas consultas de graça, mas como os remédios recomendados contém sempre algum preparado complicado, fornece os medicamentos e cobra por eles. E finalmente, para cúmulo dos seus grandes conhecimentos, vende também talismãs curativos, sob forma de amuletos (Silva, 1981:142). disse-nos que “passei o dia inteirinho procurando tètè e não consegui encontrar nenhum, acho que foi porque esqueci de cantar direito uma cantiga...” Além do procedimento formal de coletar os vegetais de maneira adequada, o horário é também de fundamental importância. As folhas devem ser colhidas preferencialmente pela manhã, bem cedo. Caso a necessidade obrigue a coleta noturna – “será necessário “acordar a folha”, que será colocada na palma da mão, uma por uma, dando três tapinhas e dizendo três vezes “acorda””. Há, ainda, dentro do fator horário, outro aspecto a ser considerado, qual seja, a troca de pertença, i.e., a espécie muda de “senhor”, por exemplo; - “algumas folhas de Ògun quando coletadas após o meio-dia, passam a ser Èsù”. A palavra cantada ou falada assume um papel relevante: ela é portadora e desencadeadora de àse. Os grãos de Pimenta da Costa (Xilonia aethioppica, A.Rich, Anonaceae, Ba-121) que são mascados à entrada do mato se destinam a reforçar tanto o poder da fala, quanto o de coletor. “Quanto mais o àsé daquele que o transmite é poderoso, mais as palavras preferidas são atuantes e mais ativos os elementos que manipula. Para que a palavra adquira sua função dinâmica deve ser dita de maneira e em contexto determinados” (Elbein dos Santos, 1977:47). Assim, as “cantigas de folhas” – k’òrin ewé – são uma forma especial de detonar o àsé potencial das espécies vegetais. Afipà burúrú Alguns usam faca para tirar complicações:

Etiponlá wa fipá burúrú Etiponlá usa força para tirar complicações Afipá burúrú Alguns usam faca para tirar complicações Etiponlá wa fipá burúrú Etiponlá usa força para tirar complicações

Ita owo, itá omo Itá de dinheiro, ità de filho Etiponlá wa fipá burúrú Etiponlá usa força para tirar complicações

Cantar ou chamar as folhas pelas denominações corretas em yórùbá não se prende somente ao ritual de coleta das espécies; este mesmo procedimento deve ser seguido em todos os outros momentos ritualísticos nos quais as folhas estão presentes. Na lavagem de contas, obtenção de um colar consagrado ao òrìsà dono da cabeça, primeiro passo para a existência de um laço entre o indivíduo e a comunidade, i.e., ele Amaranthus viridis, L. Amaranthaceae, Ba-65. Etiponlá = Ba-21 – Boerhavia hirsuta, Willd. Linn., Nyctaginaceae (Erva Tostão). Itá = Ba-28 – Eugenia uniflora, l., Myrthaceae (Pitangueira).

Passa a integrar a categoria de ábiyán dentro da estrutura social do terreiro, as folhas utilizadas são sempre frescas e pertencentes ao seu òrìsà. O ábiyán após receber o colar (fio de contas) “tomará um banho com água que contém as folhas trituradas, a fim de lavar o sangue e o azeite com os quais está marcado, passa no corpo ori (manteiga de karité importada da África), tomando precaução para não passar na cabeça e mudará de roupa. Renovará estes banhos de folha durante três dias ao nascer do sol. Atravessou o primeiro estágio da iniciação. Dar o Bórí e consagrar o colar é a mínima das obrigações a cumprir em relação ao orixá” (Verger, 1955:291).

Bastide (1973:370) ressalta que nem sempre a lavagem de contas é realizada conjuntamente com a cerimônia do bórí, podendo esta ser feita anteriormente e sem a presença do dono do colar, o que implica numa diferente gradação de envolvimento do postulante com o grupo. A cerimônia do bórí confere uma ligação ao ábiyán, podendo se constituir em um dos momentos que antecedem e conduzem à “feitura do Santo”, quando, então, ele passa à categoria de ìyàwó, momento no qual se solidificam as relações e ele ingressa na hierarquia religiosa da Casa. Nesta ocasião são feitas as lavagens dos ótá (pedras consagradas aos òrìsà) que a partir da imersão na preparação das espécies vegetais apropriadas se transformam de simples pedras em ótá – assentamentos individuais de cada òrìsà. Estas infusões ou amassi, além de consagrarem os assentamentos, sacralizam o corpo do ìyàwó estabelecendo uma relação: ótá-corpo-òrìsà. Esta mesma preparação – amassi – se transforma em àgbó, na ocasião da feitura do Santo, quando lhe é acrescentado, além de outros elementos, o sangue dos animais sacrificados, o omí èrò – literalmente “água que acalma” – e que acompanhará o iniciado durante todo o período de reclusão.

São Gonçalinho (Ba-40) Alékèsi (literalmente “pode ser chamada”), atribuída a Òsòsí, òrìsà considerado Rei de Ketu, além de utilizada embaixo das esteiras das ìyàwó e como cobertura do chão do barracão nas festas, é uma das “folhas” que entram na composição de àgbó.

Cabe ressaltar que os vegetais não estão apenas presentes nas preparações acima mencionadas, eles também fazem parte da alimentação do ìyàwó, dos temperos a ela. Primeira categoria do iniciado, surgindo após a lavagem ritual dos colares e da “comida à cabeça” (bori).

Categoria do iniciado, que surge após o período de reclusão, denominado “feitura de Santo”.

Lápine (1982:37) pormenoriza as comidas e respectivos condimentos. Adicionados, das comidas de Santo oferecidas ao òrìsà – “comidas secas” para distinguí-las das oferendas que levam o sangue de animais. Além disso, estão presentes em diversas situações, por exemplo, são colocadas folhas, embaixo das esteiras do ìyàwó (Alékèsì, Casaina sylvestre, Sw., Flacourtiaceae, São Gonçalinho, Ba-40) e mais outras pertencentes ao òrìsà de iniciado; nos quartos de Santo; no barracão por ocasião das festas, sendo que constituem um reservatório natural dentro do égbé, o que foi denominado de “espaço-mato” por Elbein dos Santos (1977:33), representação da floresta africana.

Nas ocasiões em que é necessário um rito de purificação – no corpo ou na casa de membros da comunidade – é realizada uma cerimônia denominada “sacudimento” que tem por finalidade “limpar”, i.e., purificá-los ritualmente. É interessante notar que, além do emprego de folhas verdes, frescas, as espécies vegetais podem aparecer sob a forma de comidas – acarajé, canjica, acaçá, etc. – assim como podem ser produtos industrializados – feijões, farinhas, fumo (cigarro, charutos), azeites, doce e de dendê, etc.

Da maior relevância ainda é a presença de vegetais no poste central do barracão ou, se por ventura ele não existe, no local onde está “plantado” o àsé da Casa. “O axé do candomblé deve condensar todos os axé, exatamente como o terreiro é um resumo de todo o território nagô. Geralmente, o que será enterrado sob o poste central ou mastro litúrgico, será então a “água dos axé (...) o líquido que contém um pouco do sangue de todos os animais sacrificados, cada divindade tendo seus animais obrigatórios, assim como também um pouco de todas as ervas que pertencem aos diversos orixá (Bastide, 1978:71).

De acordo com Woortmann (1978:42) o poste central ou o local onde está “plantado” o àsé é a ponte que estabelece a ligação entre o mundo dos òrìsà e o dos humanos.

O vegetal, por conseguinte, é vivenciado em todos os contextos rituais, podendo-se considerar a relação homem/vegetal como fundamental na visão de mundo Jêje-Nagô.

 
FONTE:  "Ewe Oosanyin" (material disponibilizado na Web, mas sem autoria)

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