terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Iyá Oju Bi Onan “a mãe que abre os olhos para o caminho”



Nas religiões de matriz africana, a linguagem e a aprendizagem são, principalmente, analógica e oral. Aprendemos formas de ser e viver através dos rituais, da atmosfera que compõe o espaço do terreiro, que chamamos egbé, e das redes de relações interpessoais que nele se estabelecem.
No dia-a-dia do egbé, com suas ervas e árvores sagradas, seus espaços onde habitam os Orisa, sentimos e compreendemos variações do movimento do existir. Esses registros estão, por exemplo, na “feitura de iyawô”, momento de nascimento ritual do ser comunitário; no tempo de amadurecimento dos iniciados, porque quanto mais “velhos de santo”, mais portadores de Asè, energia vital; no asese, cerimônia que ocorre quando os iniciados morrem, e através da qual é criado um campo de transição para sua volta do aiyê (terra) para o orum (céu/infinito), e de elaboração do luto para os que aqui ficaram.
No cotidiano do egbé, sentimos e compreendemos que a vida é constituída de momentos de plácida calmaria em que “nada parece acontecer”, sendo possível ouvir o vento soprar, uma folha cair, e momentos de intenso dinamismo, quando o toque vigoroso dos atabaques cria as condições necessárias para que se reatualize o contato com os Orisà/Bankisi/Voduns. Este conhecimento, incorporado e então traduzido pela palavra e pelo comportamento afetivo dos nossos mais velhos, nossos egbonmi, nos apresenta formas dignas de nascer, crescer, amadurecer e morrer, nos ajudando a compreender e lidar com a vida, suas alegrias, impasses e contradições.
Entendo que a tradição do terreiro tem essa possibilidade, porque está alicerçada em uma ordem simbólica que compreende que a vida só pode existir a partir de um sistema inter-relacional, de trocas, no qual cada componente deste sistema que é constituído de homens, divindades, antepassados e de elementos do reino vegetal, animal e mineral, é não só necessário, mas fundamental para a manutenção do todo. Esta dinâmica que integra sistemas de suporte/acolhimento e sistemas de limite não invasor nos permitiria adquirir formas de organização subjetiva nos auxiliando a elaborar os conflitos, os paradoxos naturais que se originam entre aquilo que necessitamos, desejamos, e aquilo que é possível ser obtido em função dos limites da realidade. No interior deste sistema, iniciados e adeptos, a partir de uma aprendizagem analógica, oral e afetiva, têm a oportunidade de amadurecer e cumprir seu destino.Podemos perceber o saber do terreiro através dos códigos que compõem o egbé, o barracão, os “assentos”[2] dos orisà, as danças, os mitos. Auxiliado pelas mães-criadeiras, um elemento deste sistema, vou tentar mostrar como esta tradição religiosa nos permite aprender a amadurecer, transmitindo e recriando a história de nossa raiz africana.A mãe-criadeira, que é chamada no terreiro de Jibonã, Ajibonã ou Iyá Ojubonã, é um termo que vem do iorubá Iyá Oju Bi Onan e tem como tradução “a mãe que abre os olhos para o caminho” ou “a mãe que leva ao caminho do nascimento”. Este “cargo” é ocupado por uma mulher, iniciada, que tem a responsabilidade de cuidar dos iaôs durante a iniciação Ela está presente desde a chegada do novo filho à comunidade para o início da “feitura do santo” — gestação comunitária —, passando pelo momento do “dia do nome” — parto comunitário —, até o final do processo, quando o novo iaô retorna para sua casa e família de origem. (...)Entendo, contudo, que a tradição do terreiro em sua psicologia do amadurecimento, através da mãe-criadeira, facilita a criação de uma “atmosfera”, de um campo intersubjetivo para que o “iyawo/filho de santo” tenha as condições necessárias para viver o campo de liminaridade que é a iniciação, e construir um outro “ser e viver” no mundo. Costumo dizer que, simbolicamente, a mãe ou o pai-de-santo é o corpo comunitário que gesta o iniciado, enquanto a mãe-criadeira é o útero-continente, onde esta gestação se processa.
Conversando conosco, elas vão mostrar como vivenciam e compreendem o processo de nascimento no terreiro.
[1] Este trabalho é dedicado à memória de Firmina Basília dos Reis. Mãe Firmina de Iyemanjá, minha Mãe-criadeira que, se com sua volta para o Orum deixou uma saudade muito grande no coração de seus filhos, deixou também, incorporados em nós, a vivência e o registro de uma capacidade de cuidar e de respeito pelo humano e pela vida.

Fragmento da Dissertação de Marco Antonio Guimarães.

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