Compartilho com você esse material que recebi a alguns anos do meu primo Professor Flávio
Prof. José Flávio Pessoa de Barros
Doutor em Antropologia - UERJ
Quando o Centro Cultural de Marin, órgão da administração de um dos distritos da Martinica, decidira-se por realizar, no verão de 1991, seu encontro internacional, Pierre Louis não antevia o que lhe aguardava. Afinal, tratava-se, tão somente, de expedir convite e dispor dos recursos necessários que seu governo, como das outras duas ocasiões, certamente não lhe negaria. Como presidente do Marin, conhecia bem todas as formalidades necessárias para levar a bom termo suas tarefas de organizador e mestre de cerimônia. Sabia perfeitamente que grupos de músicos, dançarinos e artistas convidar. Além disso, conhecia, de perto, historiadores, sociólogos e antropólogos dedicados à temática escolhida para discussão naquele ano. A composição étnica da Ilha já premiara, anteriormente, indianos e japoneses. Agora, comemorava-se a mais expressiva das contribuições culturais ao patrimônio de sua terra: aquela que a diáspora africana trouxera para o Novo Mundo.
Não fosse a pele negra e o esmero com que cuidava dos pormenores do evento, poder-se-ia pensar que tratava-se de um cidadão francês comum, nacionalidade da Ilha, empenhado nos afazeres comezinhos de um agente cultural. Mas nosso encontro em Paris acabaria por alterar, significativamente, sua concepção de afro-americanidade. Uma delegação do Brasil não poderia deixar de estar presente. Mais que um erro de etiqueta, Pierre Louis convencera-se do equívoco. Sua Agenda passaria a incluir um “bloco afro” (o Ilê Aiê, de Salvador), um grupo de capoeira (o Pelourinho, do Rio de Janeiro) e um candomblé (o Ilê de Iemanjá, do Rio de Janeiro). A representação do Brasil era composta, ainda, por historiadores, sociólogos e antropólogos.
Ao longo dos meses, as relações foram se estreitando através de extensa e continuada troca de correspondência. O assunto cobria os acertos para a nossa participação: resumos das comunicações, “papers”, currículos, passagens e hospedagem, enfim, providências que não demandavam maiores preocupações, pois o Centro Cultural do Marin a tudo atendia.
A expectativa de Pierre Louis era de que as delegações trouxessem para a Martinica “aquilo de mais autêntico e expressivo de suas culturas”. O grupo brasileiro, além de considerar a recomendação, preocupava-se em cuidar com denodo dos requisitos necessários para o que havia decidido apresentar. Se a estada e as condições estavam garantidas, o mesmo era fundamental assegurar quanto ao atendimento de uma inusitada pauta de itens litúrgicos. Inusitada porque nosso anfitrião não tinha levado em conta a complexa e refinada exigência de seus convivas.
A simples referência à “autenticidade” dos fatos, suscitara problemas que requeriam uma escrupulosa etiqueta. Não era uma viagem como outra qualquer. Um grupo de dança, uma exibição musical e a presença de um candomblé no evento da Martinica implicavam a consulta a oráculos, a permissão dos orixás, e a preparação das indumentárias, além da consagração dos instrumentos e da sacralização dos lugares onde músicos, dançarinos e divindades se apresentariam.
O oráculo determinara a realização de um “olubajé” e de um “presente para Iemanjá”. A primeira cerimônia dedicada a Obaluaiê, de significado simples para Francisco, o pai-de-santo, não constituía mais do que um voto de saúde e prosperidade aos anfitriões, pois é este o propósito de uma tal cerimônia. O que intrigava a Francisco era o “presente para Iemanjá”. Depois de muito pensar, acabou por concluir tratar-se de uma especial deferência: - Iemanjá é a Rainha do Mar. Eles vivem numa ilha, não é ? Iemanjá deve morar lá na Martinica, também !
Francisco, certo do apropriado entendimento da determinação oracular, passou aos arranjos para a viagem. Para o “presente” relacionara espelhinhos, perfumes, pentes, jóias, fitas e flores. Tudo deveria ser ofertado em um grande cesto. Alguém lembrara a necessidade de um barco para a entrega, no mar, do ofertório, mas tudo isso era facilmente encontrado na Ilha, como esclareceram, por fax, os organizadores. Quanto ao “olubajé”, as informações não eram alentadoras. Como atender a todos os orixás, se para o preparo de suas comidas votivas não contasse, a Martinica, com os ingredientes básicos ? Um “olubajé” é uma grande produção, distribuição e repartição daquilo que comem os orixás. E é da participação nessa comensalidade que o conviva pode ter garantida a sua prosperidade e saúde.
O babalorixá Francisco tinha, pois, de reunir à bagagem o dendê, o feijão-fradinho e preto, os “obis” e “orobôs” (sementes divinatórias), requisitos inexistentes na Ilha, conforme a correspondência assinalava. Sua preocupação maior, no entanto, estaria voltada para os animais necessários aos sacrifícios e uma peculiar modalidade de apresentação dos quitutes, pois a etiqueta do “olubajé” manda que sejam servidos sobre as folhas de mamona (“ricinus comunis”).
A consulta agora recebera, para felicidade e satisfação de todos, uma confirmação inequívoca “tem mamona e galinha d’angola”, assim chegava a notícia, transmitida por uma brasileira residente na Martinica, designada para verificar os itens que tanta preocupação traziam ao sacerdote. A “eue lará” , nome litúrgico da mamona, a folha-do-corpo, não traria maiores inconvenientes no transporte, mas a galinha d’angola, caso não fosse encontrada na Ilha, certamente traria grandes transtornos alfandegários. ocorre que “sem ela”, dizia Francisco, “não há como fazer os trabalhos”.
Avaliar o significado e extensão da afirmativa, bem como compreender a ansiedade do pai-de-santo, estava fora do alcance não só de Pierre Louis, mas de todos aqueles que tão gentilmente organizavam a recepção aos brasileiros.
Contornadas as dificuldades e ultimado o embarque, na data prevista, a delegação do Brasil cumpria toda parte do programa atribuída aos seus cinqüenta e quatro integrantes. Os ritmos, odores, sabores, sonoridades e a profusão do colorido e brilho das indumentárias, ainda hoje, guardam os ilhéus, carinhosamente na memória. Em suas cartas, Pierre Louis não esconde todo o prazer que o encontro lhe trouxera, sobretudo na considerável ampliação de seu horizonte de afro-americanidade.
O espetáculo que haitianos, jamaicanos, portorriquenhos, cubanos, brasileiros e muitos negros dos EUA, de São Domingos, Santa Lúcia e Guadalupe, apresentaram ao dramatizar o mosaico de identidades de “nuestra America”, como diria Jose Martí, é indelével. Não só para o anfitrião, mas para todos aqueles que aceitaram o convite de serem brasileiros para os outros, a começar pelo cuidadoso Francisco.
Ao integrar a comitiva, o fizera depois de ter considerado a recomendação de “autenticidade” de um certo ponto de vista, o do povo-de-santo, estilo de vida e visão de mundo singulares, aos quais aderira ainda menino. Daí tanto escrúpulo. Viajar com tamanha responsabilidade exigia a aguda consciência dos fundamentos sobre os quais se assentaram suas convicções e identidade. Não estaria só, portanto. Acompanhava-o um tempo mítico em que a galinha d’angola, a “poule marrone”, o “conquem”, o “etú”, nominação diversa e um só personagem, orientava a sua memória dos ritos. Na base de tudo isso, o regozijo de quem cultiva origem e descendência. Mas dizer origem e descendência para um filho-de-santo é enfrentar, de um só golpe, os mistérios da criação e da morte. E a referência à galinha d’angola é incontornável, não só quando se tem de “fazer os trabalhos”, mas sobretudo quando se trata de pensar o sentido da existência. Sobre este animal maravilhoso, trazido da África, cativo também, muitos sacerdotes como Francisco contam histórias:
“Era grande a mortandade. As pessoas estavam apavoradas e pediram a oxalá. E ele mandou fazer “ebó”. Mandou pintar uma galinha preta com pintinhas brancas de efúm (Giz). Depois disse para soltar no mercado. A morte se assustou e foi embora. Assim surgiu a galinha d’angola.
“Um dia oxum estava sozinha, muito sozinha ...Resolveu, então fazer a sua gente. Pegou uma galinha, catulou, raspou e pintou com muitas pintinhas.Colocou na sua cabeça, no seu “ori”, um chifrinho. Fez assim o povo-de-santo, o primeiro iaô que é a galinha d’angola, um bicho que é feito.
Era disso que se ocupava Francisco, em tantas reflexões, quando de sua memorável viagem a essa África caleidoscópica que lhe reservava a Martinica.
Bibliografia:
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TURNER, V.W. - Syntaxe su Symbolisme D’Une Religion Africane. In. Le Comportament Rituel Chez L’Homme et L’Animal. Paris, Éditions Gallimard, 1971.
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